sábado, 3 de novembro de 2012

Psicodrama para todos

Ela foi abusada sexualmente dos 13 aos 15 anos. Como na maioria destes casos, o agressor andava por perto. Era um dos irmãos mais velhos. Tratava-se de uma família de muitos filhos e pouca condição, viviam numa pequena aldeia na ilha da madeira. Alguns dos irmãos mais velhos partiram cedo para outras paragens. Na altura dos abusos habitavam a casa,  a vitima, a irmã mais velha, os pais e o irmão agressor. Ela apenas se livrou dele quando este emigrou para os Estados Unidos. Mais tarde livrou-se da casa e das memórias mais frescas  quando veio estudar para Coimbra. Nunca mais voltou.
Agora tudo se complicara. Um irmão, emigrado nos EUA vem para casar. É inevitável o reencontro. Todos se vão juntar na mesma ilha, na mesma aldeia, na mesma casa, nas mesmas memórias. A sua ansiedade crescera brutalmente nas últimas semanas. Maria estava à beira do descontrolo. Viveu a dor silenciosamente durante anos. Mas não aguenta mais.

A directora do grupo de psicodrama, Joana Amaral Dias, depois do aquecimento psicodramático, pede a Maria que antecipe a cena do reencontro familiar no cenário (palco). Ela fixa os olhos assustados na directora. Olha para o palco, volta a olhar para a directora. Olha para mim, o Ego Auxiliar e avança em silêncio, cabisbaixa para a cena. Ela era a protagonista da dramatização daquela sessão.
No palco constrói uma grande mesa de jantar com os bancos e à sua volta senta os vários elementos, escolhidos por ela entre o grupo, que irão representar as várias personagens da sua família. Na mesa, simbolicamente, estão agora ela, a irmã mais velha, a quem na altura tinha pedido ajuda, a mãe, o pai e o tal irmão agressor. Todos os papeis são representados por elementos do grupo (egos auxiliares), excepto o do irmão agressor que é representado por mim (ego profissional), por decisão da directora

Os diálogos começam recorrendo à técnica psicodramática de inversão de papéis. A Maria começa a interacção. Primeiro dirigisse à irmã e questiona-a sobre o seu silêncio – Porque não me proteges-te? Segue-se a troca de papéis, a Maria troca de lugar com a “irmã” e já no papel dela responde – Tive medo das consequências. Ele ameaçou-me. Nas trocas seguintes a tensão sobe brutalmente. A Maria de olhos anormalmente abertos desfaz verbalmente a irmã com acusações contundentes. Está descontrolada. O seu rosto e o olhar pulverizam raiva. Segue-se a inversão de papéis com o irmão.
- Porque me fizeste aquilo seu porco? No papel do irmão e após algumas inversões de papel pressinto-lhe no olhar e no silêncio a fúria prestes a explodir. De repente a Maria acerta-me com um murro na cara com tal força que vejo estrelas e sinto-me projectado contra a parede do consultório. A directora interrompe a dramatização. Ela desata num choro descontrolado durante uns bons dez minutos. Descarrega toda a tensão. Fica tranquila. Acaba de ter uma catarse de integração.

Maria partiu pouco depois para a ilha da Madeira e o reencontro aconteceu sem ocorrências. Ela não mudou nada no seu passaso, mas naquela sessão integrou o passado de uma forma diferente. O passado é o mesmo, mas a forma como Maria o vive alterou-se profundamente.

Protagonista, director, egos auxiliares, auditório e cenário, são palavras que têm um significado específico no psicodrama moreniano. Fazem parte de léxico que, como em qualquer outra psicoterapia, permite demarcar a interacção terapêutica da interacção pessoal na vida real. Estes cincos conceitos são também os que designam os “cinco instrumentos do psicodrama”.
Então vejamos, onde se fazem as sessões do psicodrama?
O psicodrama de grupo é realizado numa sala que em muitos casos tem poucos mais de três por quatro metros e um jogo de luzes coloridas. No centro existe um estrado baixo, a que chamamos cenário ou palco, sobre o qual estão colocadas, num dos topos, duas cadeiras vazias encostadas pelas pernas da frente. Estas cadeiras são o símbolo do psicodrama e, nesta posição, significam o encontro que se vai processar. Quando o director as abre, inicia-se uma dramatização.

O Cenário é o espaço nobre do psicodrama. É o equivalente ao palco teatral. É neste espaço que se processa a acção, a representação terapêutica comandada pelo director. Para a sua execução, o protagonista pode pedir que outros elementos representem pessoas e pode compor o cenário com móveis e objectos presentes na sala, concretizando melhor o espaço representado. A forma simples e maciça dos bancos do auditória presta-se bem a este fim.
O auditório, conjunto de todos os elementos do grupo, o público portanto, deve-se aperceber de que o cenário é um espaço de liberdade. Tudo, desde as vivências mais banais às fantasias mais secretas, se pode representar nesse espaço, e tudo é reversível. O tempo pode avançar e recuar, uma acção pode ser repetida e modificada conforme as suas consequências. Pode-se simbolicamente matar ou morrer. Não se pedem contas pelo que cada elemento faz no cenário, contando que o director pode sempre cortar a cena ou intervir de outro modo.
 
O protagonista é quem vai utilizar o cenário (palco). É o elemento que, no início da sessão, no aquecimento, se destaca do grupo pela importância ou oportunidade das vivências que traz à discussão. Nesse caso ele pode ser convidado pelo director para representa-las no espaço do cenário.
 
Durante a dramatização o protagonista interage com os chamados egos auxiliares. Estes são escolhidos, de entre os outros elementos do grupo, a fim de representarem as pessoas com quem, na vida real ou na sua fantasia, ele interage. É entretanto indispensável que a equipa terapêutica inclua, para além do director, um o dois egos auxiliares com treino em psicoterapia e psicodrama, a fim de executar papeis mais difíceis e certas técnicas e colaborar com o director durante toda a sessão.

Tal como o teatro ou a vida social não existem sem plateia ou o público, a dramatização não tinha sentido sem o seu próprio público, o auditório. Este é então constituído pelos membros do grupo que permanecem sentados, ou sejam que não entraram na dramatização.
Finalmente, o director é o principal terapeuta e o responsável por todo o processo do psicodrama. Apesar de contar com a colaboração dos egos auxiliares, cabem ao director todas as decisões importantes. É ele que inicia e finda as sessões e as dramatizações, analisa o material relevante e elabora as estratégias, controla o aquecimento, escolhe o protagonista e finaliza os comentários.
(continua)

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