quinta-feira, 23 de maio de 2013

Licença para Foder

«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.»

José Saramago - Cadernos de Lanzarote - Diário III - pag. 148



Sabe-se agora que o anúncio da mastectomia dupla realizada pela actiz Angelina Jolie pode fazer parte de uma campanha milionária paga por um grupo farmacêutico privado para “forçar” o Supremo Tribunal Federal dos EUA a autorizar a patente do gene BRCA1. Angeline Jolie poderá ser a "ponta da lança" da indústria farmacêutica para promover uma prática clínica a partir da análise da mutação de um gene patenteado por uma empresa privada com interesses milionários na área da saúde.
O grupo privado pretende ter a autorização para explorar em regime de exclusividade a investigação, exploração comercial e demais direitos sobre um gene do corpo humano!

Que a actriz venda à indústria farmacêutica o seu corpo é perfeitamente aceitável. Ela é uma entidade privada, livre e responsável pelas suas acções.  Mas o que importa aqui sublinhar é a legitimidade de um estado poder conceder a exploração comercial a privados de componentes do corpo humano e de recursos universais que deveriam ser "apenas" património da humanidade.

Um dia não me admiraria que uma multinacional qualquer patenteasse os tomates do Zé Camarinha para desenvolver um remédio para os chatos ou merda parecida!

Este ano a Comissão Europeia, que não tem mais nada que a preocupe, prepara-se para apresentar uma proposta oficial para uma Lei das Sementes, um projecto legislativo iniciado em 2008, que pretende regular a comercialização de sementes, com aplicação imediata em toda a União Europeia, sobrepondo-se às legislações nacionais, contrariamente às demais directivas europeias, que dão espaço de manobra aos países-membros.

Esta lei pretende ilegalizar todas as sementes que não sejam registadas nos Catálogos Nacionais de Variedades. Apenas exclui desta obrigação as sementes utilizadas na investigação ou em bancos oficiais de sementes e pretende proibir a troca informal e gratuita entre pessoas que não sejam criadores ou agricultores.

Mas afinal a quem pertencem as sementes? A toda a humanidade ou aos grupos económicos que as vão patentear? Não deixa de ser curioso que um património vegetal que evoliu livre e naturalmente durante milhões de anos, incluindo 10.000 anos de prática agrícola, sem nenhuma cataclismo, careça agora de ser “disciplinado e regulado” por meia dúzia de burocratas instalados na Comissão europeia! Estarão eles ao serviço das populações? Ou ao serviço dos grandes interesses instalados?

Esta proposta de lei constitui um ataque à agricultura de pequena escala, à agricultura de subsistência e às actividades de preservação de sementes tradicionais. Mesmo com a promessa de taxas de registo mais pequenas para a categoria de sementes chamada "tradicionais", os custos, que serão anuais, e as burocracias (inspecção no terreno, requisitos complexos para embalagens,..) a que a nova lei obriga, inviabilizariam a participação de pequenos “operadores” no mercado, mesmo quando não têm fins lucrativos! Isso significará o controle deste negócio pelos grandes operadores.

A nova lei para a comercialização de sementes vai efectivamente banir dezenas de milhares de variedades de sementes tradicionais e ameaça directamente a agro-biodiversidade do planeta, a agricultura de subsistência, a nossa soberania alimentar e até mesmo a nossa segurança alimentar. É a primeira legislação que se atreve a barrar o acesso a sementes para a produção local de alimentos. O pequeno agricultor, mesmo o mais pobre, ver-se-á obrigado a comprar as suas sementes no mercado, ano após ano, com o risco adicional de ver estes custos subir, devido à existência de oligopólios na produção de sementes comerciais.

Estes casos são apenas mais dois exemplos da ofensiva global dos grandes interesses económicos no sentido da apropriação e controle dos recursos do planeta para promoção do lucro fácil. Se pensarmos em todas as dificuldades e obstáculos colocados aos produtos da pequena produção local, facilmente chegaremos à conclusão que o propósito é a destruição dos produtores locais, dos mercados tradicionais e da agricultura de subsistência.

Curiosamente, enquanto as “policias” europeias tipo ASAE combatem ferozmente os pequenos produtores, as produções tradicionais e os mercados locais, grandes grupos económicos, nas suas barbas, misturam carne de vaca com carne de cavalo ou adulteram sabe-se lá mais o quê!

Portugal, por exemplo, transpôs para a legislação nacional mais de 90% das directivas relativas ao controle alimentar, mas apenas 10% das directivas produzidas para o combate à corrupção! É muito curioso e apenas mais um exemplo do curso dos acontecimentos.

Não nos admiremos pois, que um dia, patenteiem a água que bebemos, o ar que respiramos, o céu e o mar ou mesmo o Kamasutra, obrigando-nos a tirar licença para f*der. Não digam que eu não avisei!!

1 comentário:

dioguinho disse...

belíssimo texto rapazote.
a lei referente à agricultura não tenho estado a par. quanto a angelina jolie, a ser verdade, é algo a ser levado a peito. ahahah uma piada!