quarta-feira, 25 de julho de 2012

O velho padre Gonçalves



Aquela hora e pouco parecia eterna. Era um suplício semanal. Vestido a rigor e impecavelmente penteado pela dona Ermesinda lá estava eu pronto para o sacrifício. De casaco de bombazina castanho claro, cor que jamais vesti, forrado com lã de ovelha, calças de terylene estilo boca-de-sino feitas por medida pelo senhor Adalberto, alfaiate em part time que caçava os fregueses no largo da aldeia aos domingos de manhã depois da missa. Nos pés calçava uns imponentes sapatos de tacão alto, a minha primeira manifestação histriónica, comprados na feira anual de Montemor-o-Velho, dois números acima, entupidos com papel de jornal para que o pé não dançasse demasiado. Lá estava eu imóvel a fazer de conta que ouvia o padre Daniel no seu indecifrável e aborrecido sermão. Assisti aquela provação domingos a fio! Depois veio o 25 de abril de 74 e os ventos foram-lhe desfavoráveis. Acabou expulso à forquilha por meia dúzia de comunistas de meia tigela lá da aldeia.
No lugar dele veio um padre cujo nome se me varreu da memória, lembro-me que usava uma prótese numa das pernas e viajava numa carripana de três rodas de habitáculo fechado. Não lhe achei a diferença e aqueles sermões continuavam com o mesmo espírito punitivo e castrador de sempre. Aquilo entrava por um ouvido a cem e a saia a duzentos pelo outro, pelo menos pensava eu! A única distracção verdadeiramente estimulante era a presença da Teté e da Bela, as raparigas mais bonitas da terra, pelas quais nutria o secreto desejo de me iniciar na arte dos amassos.
Um dia não houve missa! O padre capotou a carripana e ficou fechado de pernas para o ar, com a única porta trancada contra o asfalto. Saiu ileso. Foi uma felicidade. Para nós claro! Em menos de nada desaparecemos todos do adro da igreja, não fosse o gajo chegar a tempo.
Após o seu falecimento, anos mais tarde, veio um tal padre Gonçalves. Uma besta-quadrada que nos obrigava a estar em sentido durante a missa. Assumiu como primeira medida da sua gestão a proibição total de decotes e minissaias na igreja. Uma gestão danosa logo se vê!

Um dia, na festa anual em honra do nosso padroeiro, recusou celebrar a missa caso as mulheres da banda filarmónica teimassem em permanecer na igreja com aquelas minúsculas saias.

Como era possível ser tão estraga prazeres? Perguntava eu. O homem conseguiu acabar com a réstia de entusiasmo e instaurou de vez o seu discurso dogmático. Nós, ávidos de novas experiências, de novas descobertas, invadidos pelo formigueiro da adolescência, com os primeiros pelos a tentar furar a pele e levamos com um balde de água fria daqueles! Que tristeza.
A sexualidade foi a partir de então construída e vivenciada dentro de um forte aparato repressivo e castrador, sobre forte vigilância e influência dos dogmas e ensinamentos do padre Gonçalves, que atribuiu às práticas sexuais todos os males da humanidade, cumprindo aliás a velha tradição da sociedade judaico cristão. Para garantir que o pecado do prazer não se manifestaria ou se o fizessemos seria punido, o padre Gonçalves exigiu a confissão regular e pormenorizada, com o objectivo da punição e do doutrinamento, onde o menor desejo, o mais suave pensamento sexualizado, o gesto mesmo que subtil denotando algum prazer deveria ser por nós relatado e posterior firmemente punido.
Mas para grandes males grandes remédios e assim, atingido o ensino religioso obrigatório, pirei-me para nunca mais ser visto nas imediações. O padre Gonçalves parece que se reformou anos depois.
Regressei ocasionalmente, em épocas festivas, mas sempre de pé atrás, não fosse o padre Gonçalves reaparecer como um fantasma no cimo do altar, com as suas vestes brancas. A medo adoptei a atitude preventiva de me colocar discretamente junto à porta com um pé dentro e outro pronto a sair a qualquer momento caso o ambiente toldasse.
Desde há uns anos, noutra localidade, assisto ocasionalmente a alguns sermões do padre local. Ele tem tudo o que os outros tinham, mas em pior! Aquele discurso mórbido, negativo, culpabilizante e punitivo ganha agora uma profundidade nunca antes vista.
Vem isto a propósito de uma romaria que presenciei acidentalmente na província da Andaluzia, mais propriamente numa localidade chamava La Redondela, em honra da padroeira local.
Na procissão desfilavam mulheres, homens e crianças com trajes tradicionais da região. Algumas mulheres trajavam vestidos sevilhanos, longos brincos e flores no cabelo. Outras montavam cavalos, vestindo camisa branca, calças pretas justas, botas de couro e chapéus pretos. Os homens de camisa branca e calça preta de chapéu do mesmo género. Na mão homens e mulheres empunhavam garrafas e copos que bebiam debaixo daquele tórrido calor andaluz. No andor, transportado por uma parelha de cavalos, desfilava uma imponente imagem representando a santa protectora. O ambiente era notoriamente descontraído, festivo e as pessoas faziam questão de o não esconder.
Logo que recomecei a viajem veio-me à memória os tempos do velho padre Gonçalves e todas aquelas ideias com que nos formataram enquanto puderam. De repente pensei naquela romaria e estranhei algo. Faltava qualquer coisa naquele cenário. Aquela sensação arrastou-se ainda por um bom par de quilómetros, até que finalmente descobri – Faltava o padre! A procissão não tinha padre! Pensei! Os gajos livraram-se dele, não fosse o tipo proibi-los de beber e divertir-se durante a cerimónia!
Pensei naquela forma de expressar a fé e achei que a coisa podia funcionar. Senti-me contagiado por aquela alegria e sobretudo pela sensação de liberdade que aquele quadro inspirava.
Mas, uns quilómetros mais à frente, aquela sensação de bem-estar começou a dar lugar a uma progressiva inquietação  que desembocou num ténue sentimento de culpa.
Pensei, porra que merda ! Ah já sei… É o espirito do padre Gonçalves amartelar-me a consciência! Haja paciência!