sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Águas de Bacalhau


 
Sempre que mudo de meias, coisa que faço cada vez mais raramente, levanto-me quase ao nascer do sol, tal a empreitada que me espera!
Emparelhar meias é hoje para mim um autêntico quebra-cabeças. É bem mais provável o emparelhamento amoroso entre homens e mulheres, homens e homens e mulheres e mulheres, onde parece haver um íman invisível capaz de provocar autênticos arrastões de emparelhamento, que emparelhar um único par de meias. Mudar de meias é em certa medida até perigoso e coisa a evitar, tamanha a probabilidade que tenho de chegar atrasado ao meu santo emprego ou até faltar da parte da manhã e, ainda assim, apresentar-me com um par desencontrado.
Tenho em casa quatros gavetas repletas de meias pretas de canhão curto. Optei por esta tipologia de meias de forma estratégica, por ser daltónico e desse modo fugir ao potencial desorganizativo que as cores têm em mim. Mas estava longe de imaginar a tortura que me esperava. É que o meu parque de meias está de tal modo desemparelhado, envelhecido e degradado que pôr a coisa na ordem é uma tarefa hercúlea!

Um terço do meu portefólio de meias está cheio de carrapatos, seres que trago das vinhas às toneladas e que passam a habitar comigo em ambiente de grande intimidade. Outro terço do lote é constituído por meias aparentemente iguais, mas que na verdade têm sempre um ou outro pormenor impeditivo do sagrado emparelhamento. O último terço apresenta nuances de pretos de tal maneira diferentes que podem variar do preto escuro ao preto claro ou até, imagine-se, apresentarem riscas preto escuro, preto claro. Fui claro não fui?
Mas o fascínio das meias desemparelhadas não se fica por aqui.  Existe outa tipologia de meias que me fascina ainda mais – As meias verdades!

Antes de mais demandas, temos que prestar a devida homenagem e consequente agradecimento às particularidades do nosso sistema de escrutínio político, judicial, social e até jornalístico, por nos proteger de levar com verdades inteiras.

Noutros países, menos preocupados com a saúde mental dos seus cidadãos e por certo menos desenvolvidos, como a Dinamarca, Finlândia, Luxemburgo ou até a triste Alemanha, entre outros, existe esse o mau hábito de esclarecer tudo até ao fim. Países de pouca sensibilidade claro está, onde existe o mau hábito de tratar e esclarecer os processos judiciais que envolvem por exemplo, altos dirigentes de cargos públicos, políticos ou outros gatunos, até às ultimas consequências, chocando e aborrecendo as pessoas com a realidade nua e crua, sujeitando-as à severa consciência da realidade.

Em Portugal essa violência não se verifica graças a Deus e à existência de um moderno sistema, produto de anos de aperfeiçoamento, em que tudo fica sabiamente em águas de bacalhau! Assim, poupam-se os contribuintes portugueses a chatices desnecessárias e à confirmação de que os seus impostos possam acabar nos bolsos de um bandido qualquer.

Imaginem o que seria de nós se um dia destes nos confirmassem preto no branco que o Sócrates, o Pinho, o Vara, o Artur Santos Silva, o Duarte Lima ou um outro qualquer gatuno se apropriava do que era nosso. E se se descobrisse o que passou em Tancos? Seriam chatices atrás de chatices e noites mal dormidas, mais calmantes, mais comprimidos para a tensão, para a tesão e outros aborrecimentos sem necessidade!

Assim, este nobre pais é uma enorme gaveta de meias-verdades desemparelhadas, onde ainda é possível assistir em paz à novela da noite ou fantasiar sobre as encabadelas do Ronaldo, sem que ninguém nos incomode com a maçadora realidade!