quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Irmandade do Toneis - Acta do 67º Tonel


                                                                                  
Quis a ironia do destino que o vinho alentejano José de Sousa 2010 tivesse sucumbido (o menos pontuado da prova, com 52 pontos) no preciso dia em que, outro José de Sousa, um tal de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa tombava também retumbantemente nos calabouços da Policia Judiciária! O tombo do segundo era bem mais esperado que a do primeiro diga-se.
Noutra boa ironia do destino, neste tonel, triunfou o duriense Meandro 2011 (68 pontos), justamente na semana em que a região do Douro caia nas bocas do mundo vinícola depois de ter visto a famosa revista norte americana Wine Spectator colocar 3 vinhos da região nos 4 primeiros lugares do seu top 100. O Dow´s porto vintage de 2011, ocupa o primeiro lugar no ranking anual da revista com 99 pontos e os tintos Quinta do Vale Meão  e Chryseia ocupam os 3º e 4º lugares, acequio,  com 97 pontos. Ambos da já mítica vindima de 2011, que se afirma como umas das grandes colheitas dos últimos 100 anos. Aliás, no momento de comprar bons vinhos portugueses, na dúvida entre colheitas, podemos optar sem grande risco pela de 2011. Seguramente compramos um excelente vinho, independentemente da região de origem.
Mas o que importa aqui igualmente ressaltar são outros meandros - os de uma irmandade constituída no ano de 2000, constituída do 8 irmãos, que se propôs viajar por vinhos complicados, vinhos de um cabrão e que o tem feito, ao contrário de outros, os tais que à hora de trabalho vêm “mulheres avantajadas”, com competência, isenção, paixão e dedicação desinteressada durante 14 anos e 67 tonéis (provas), como manda a cartilha dos amantes do vinho.
Constituída pelos oito irmãos na foto acima publicada, foi no presente tonel tomada a tardia decisão de alargar a sua composição aos irmãos Nelsinho, João Lopes e Victor Cancela que veem o seu actual estatuto de curiosos do vinho, passar no próximo tonel a irmãos de pleno direito. Claro está que a cerimónia de entronização carece de rituais próprios e devidamente previstos e fundamentados em cartilha suprema, salientando-se, neste caso o imperativo do acto carecer, para atestar da sua legalidade, da abertura de um qualquer Porto um vintage de 2011 promovido pelos três ditos em agradecida comunhão. A ocasião obriga a tal esforço! Ao nosso, perceba-se, que isto de beber um bom vintage em fecho de refeição tem o seu quê de doloroso! Mais para os três claro!
A irmandade Perdeu fulgor? Perdeu! Vai acabar? Nada disso! Aos amantes do vinho não basta produzir lugares comuns ou frases feitas sobre o dito. Cumpre-nos a nós evitar que tão ilustre congregação resvale para tal enfermidade. O Vinho na vida de uma amante ganha dimensão poética, carece de uma lógica emocional interpretativa. De um fundamento. De um propósito. Não basta que o vinho apresentado seja bom, condição de resto obrigatória. O vinho apresentado por um amante do vinho deve ter uma história e contar estórias, representar um enamoramento, uma paixão. Deve comunicar algo! E tanto quanto possível essas estórias devem entrelaçar-se com as vivências do seu proponente. Claro fica que jamais de deve comprar um vinho à pressa, sem preparação prévia ou a caminho de uma prova, a não ser que se trate claro está, neste caso, de um qualquer Barca Velha por ai abandonado na prateleira um qualquer estabelecimento. Igualmente se exige presença assídua, não contando impedimento menor como fundamento válido para uma falta! Para além da morte do próprio, contar-se-ão com os dedos de uma só mão outros argumentos válidos. O que jamais poderá acontecer é que a morte do próprio não nos seja comunicada ou que o dito vá morrendo aos poucos sem aviso. Mas vamos ao vinho!
Neste tonel estavam em prova, como sempre, oito vinhos. Para além dos dois vinhos já mencionados, foram a degustação os bairradinos Avô Fausto 2010 da Quinta da Bageiras (4º lugar, 59 pontos) e Casa de Saima grande reserva 2011 (6º lugar, 58 pontos). Da planície alentejana, para além do já referido José de Sousa, estavam o Fita Preta 2012 (5º lugar, 59 pontos), o Herdade do Peso 2011 (3º lugar, 61 pontos) e o vinho Azamor 2010 (7º lugar, 54 pontos). Da região duriense, o já referido vencedor e ainda o vinho Poeira Dusty (2º lugar, 65 pontos).
Em dia de jackpot, o irmão Luís identificou os todos os vinhos em prova, método de semicega, igualando o feito único, até à data, do Irmão Meno, entretanto por terras de Vera Cruz. Sorte? Claro. Mas não só! Em prova estavam 3 regiões bem diferentes, a Bairrada com a garra dos taninos, as vezes indomáveis, dos seus baga, a planície com os seus vinhos de fruta bem madura, quase compotados, mas por vezes poucos frescos e o Douro com a sua pujança e incrível equilíbrio. Naturalmente estavam perfis bem diferentes em prova e a partir deste pressuposto seria teoricamente mais fácil identifica-los, quanto mais não fosse por região. Digo eu!
E se alguém lhe oferecesse flores… isso provavelmente será Touriga Nacional
Num pequeno inquérito realizado na irmandade foi pedido a cada um dos seus irmãos que, partindo do seu saber, das suas paixões, da sua experiencia vínica e do perfil de vinhos que procuram, respondessem à seguinte questão – Que duas castas plantariam numa vinha própria? Oito dos nove irmãos presentes escolheriam a casta portuguesa Touriga Nacional como primeira opção de plantação. Na segunda opção, a maioria dos irmãos associariam à primeira escolha a casta Baga. As restantes escolhas ficaram a grande distância e dispersaram-se, por entre alguns disparates, por várias castas.
Esta conjugação de castas em termos de região coincide tradicionalmente com a encontrada na região do Dão e sobretudo na Bairrada em terrenos respectivamente de origem granítica e argilo-calcários, capazes de emprestar grande frescura e mineralidade aos seus vinhos. Seriam vinhos, se bem feitos, encorpados, estruturados e longevos que associariam os taninos poderosos e por vezes indomáveis da Baga com os taninos firmes e elegantes da Touriga Nacional. No nariz, apresentariam as notas florais exuberantes da Touriga Nacional e os aromas a frutos silvestres e bagas vermelhas da baga, que evoluiriam para notas aromáticas mais complexas de ameixa preta, tabaco e café, com o tempo, se vinificados, claro fica, na Adega das Penicas. Seriam vinhos de guarda seguramente!
As hostilidades abriram, ainda antes do jantar, com a prova dos espumantes Vinha das Penicas rosé 2013 e Vinha das Penicas 100% Baga 2013 que acompanharam, bem, as diversas entradas preparadas pelo chefe António Neves. Seguiu-se uma original sopa de ortigas, bacalhau confitado com migas e um soberbo leite-creme queimado na hora, que fez companhia a um moscatel de Setúbal da José Maria da Fonseca e a um vinho do Porto 10 anos.
Agradeça-se ainda a hospitalidade do casal António e Susana.
E porque a vida é por vezes bem amarga, bebamos então bons vinhos e cuidemo-nos enquanto é tempo!
(P.S: Este texto não é ficção, ele reproduz fielmente, tanto quanto o vinho permitiu, os momentos e as ideias expressas pelos irmãos durante a degustação e respectiva Prova.)


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os afinadores de pessoas



Ela tentara o suicídio vinte e quatro horas antes. O acto pareceu mais apelativo que verdadeira intenção de morte, mas nunca se sabe. Na sessão seguinte, apresentava um ar arrebitado, vivaço, pouco consistente com quem quisera morrer na véspera. Mulher de estatura alta, autoritária, dinâmica, inteligente, perspicaz, humor corrosivo, visão irónica, de grande exigência sobre ela própria e sobretudo sobre os que a rodeiam! No Átomo Social (técnica de apresentação psicodramática) foi-lhe pedido que colocasse no palco (instrumento psicodramático) as pessoas mais significativas – o pai, teimoso e autocrático, a mãe, submissa e deprimida, o irmão, menino da mamã, superprotegido e acomodado e finalmente o marido, influenciável e indeciso! Apresentava portanto, reservas sobre todos, ainda que se lhes declarasse um amor inequívoco! Mesmo relativamente ao marido de quem se tinha separado após apenas seis meses de casamento e dez anos de namoro. Apesar deste amor sem fim tinha, sobre todos, qualquer coisa a apontar, uma espécie de espinha atravessada na garganta, que impedia a sua satisfação plena! Era uma mulher sobressaltada e, nas sua próprias palavras, infeliz!
Quando o director do grupo lhe pediu que trocasse de papel com cada uma das pessoas significativas que colocou no palco, revelou uma inesperada dificuldade. No lugar dos outros, o discurso outrora escorrido e fácil, perdeu fluidez, espontaneidade e sucumbiu a silêncios incómodos. Não sabia colocar-se no lugar dos outros. Nunca o tinha feito! Estava amarrada aos seus próprios papeis, à sua visão do mundo! Apresentava um enquadramento  inquinado sobre a realidade circundante, feito quase exclusivamente a partir da sua própria “janela”. Encerrada em si, nesta posição, jamais poderia compreende-los.
Quando o director lhe pediu para mudar o que desejasse na cena, percorreu-os um a um e deu-lhes uma pequena afinação, mais simpatia neste, menos submissão naquele, mais atitude no aqueloutro. Afinou-os como se eles tivessem um pequeno parafuso de regulação atrás da orelha, que ela sabiamente, munida de uma pequena chave de fendas imaginária, ajustava ora mais para a direita, ora mais para a esquerda, até os colocar no ponto! Sobre ela própria nenhuma palavra, nenhuma mudança! Neste sentido, ela em pleno sofrimento, advogava uma solução mágica – ajustar o mundo a si em vez de se adaptar a ele. Um equívoco portanto!
Somos todos, uns mais que outros, um pouco assim – instalados no nosso castelo, no nosso cadeirão panorâmico, centrados no nosso umbigo, esperamos que as relações com os outros e com o mundo sejam uma espécie de fato feito à nossa medida! E perante a diferença, estremecemos, sentimo-la frequentemente como uma ameaça à nossa construção e à nossa organização interna. Temos imenso medo do que é diferente, do que é desconhecido. E como a melhor defesa é o ataque, fazemos o contraditório, o ataque ao outro, partindo muitas vezes de uma visão enviesada e  inquinada. Este ataque ganha contornos e amplitude mais ou menos intensos, consoante o nível do conflito e o perfil da personalidade de cada um, seja na forma psicológica ou, no limite, podendo chegar à eliminação física do outro.
Estamos muito pouco dispostos a mudar, a ceder ou a conceder. Estes fenómenos revelam-se nas famílias, nos grupos sociais, nas organizações, na política, na economia de mercado ou em qualquer outra área da esfera das relações humanas.
Sob o argumento da diferença são retirados todos os dias direitos fundamentais a pessoas, a grupos ou agregações de toda a natureza, reduzindo-lhes ou aniquilando-lhes o direito de escolher, de ser livres, de expressar a sua opinião, de expressar a sua religião, as suas opções sexuais ou a liberdade de exibirem a cor da sua pele, oprimindo-os, negando-lhes a qualidade de se constituírem com outro diferente! Reduzindo-os à imagem e semelhança do dominador.
A diferença de opinião torna-se argumento que legítima o ataque, legítima o exercício da prepotência, da discriminação, da dominação e da exploração! A diferença merece, neste contexto, o estatuto de inferioridade.
Este ano morreram já mais de trinta e cinco mulheres vítimas de violência doméstica ou crimes de natureza passional. Morreram também 10 homens. Ironicamente,  sete deles
suicidaram-se após terem executado as (ex) companheiras.
Para muitos, o lema continua a ser “mais vale quebrar que dobrar!”