terça-feira, 27 de novembro de 2018

O bom selvagem


Levantaram-se ao nascer do sol, enfiaram a primeira roupa de lhes apareceu pela frente, engoliram o pequeno almoço e lançaram-se para a rua em azafama, com se nada mais importasse. Conduziram os seus carros em fúria, negaram prioridades no trânsito, estacionaram em cima dos passeios e correram em direção às lojas, desenfreados, atropelando novos e velhos, deficientes e crianças. Passaram por cima de toda a folha para, já em manada tipo gnus, se apertarem contras as grades das lojas, esperando o tiro de partida para o assalto final. Era o Black Friday.

O filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), defendeu que o homem se constituía como uma entidade naturalmente boa e que seria no processo civilizacional que se corrompia e se afastava da sua verdadeira natureza, transformando-se, por vezes, numa besta quadrada, a que Trump pode servir de exemplo deveras ilustrativo…

Eu sempre duvidei dessa natureza boa. Sempre desconfiei que o homem já nasce com um ligeiro instinto bélico, mas independentemente do momento em que nos tornámos verdadeiros aninais, o que conta é que de facto somos, na maioria do tempo, umas bestas uns para os outros. Sempre fomos!

O homem é a espécie animal mais prematura e imatura, a mais dependente e a que mais depende à nascença das condições ambientais e dos cuidados dos seus progenitores. É também por isso, por essa infância prolongada, por essa oportunidade relacional de grande proximidade que o homem encontra as condições para evoluir e se destacar dos demais animais. Foi na relação que o homem primitivo progrediu e se emancipou, tornando-se homo sapiens .

Na verdade o ponto de viragem de tudo isto foi a descoberta da linguagem, a partir da qual o homem ganhou a capacidade de transmitir conhecimento adquirido e acumulado a lugares e tempos distantes.  Antes o homem não passava de um animaleco somente capaz de grunir e gesticular no momento os poucos instintos que possuía.

Estima-se que há cerca de 100 mil anos o contingente de homens primitivos modernos no planeta não seria mais de 50 mil gatos pingados espalhados pelo continente africano e médio oriente. Isto, depois dos homens primitivos modernos europeus, ao fugirem da vaga de frio na europa, irromperem por Africa abaixo e dizimarem os tristes africanos. Era a primeira prova da boa relação Europa e Africa!

Com tanta zaragata e pancadaria estima-se que há 50 mil anos a população de homens modernos não ultrapassaria os 5 mil indivíduos. Na verdade, como todos se dedicavam à caça e a colecta de plantas e outros alimentos, como nada se acumulava e nada havia para trocar, sempre que grupos diferentes se encontravam era um "deus nos acuda" e porrada de meia noite! Ou seja, nunca houve condições para florescer nenhum sentimento de simpatia pelo outro diferente nesta época! Ontem, tal como hoje, o homem tem muita dificuldade em tolerar a diferença!

Segundo Lawrence H. Keeley (1947-2017) a sociedade tribal perdia em média 0.5% da sua população em combates pela posse de alimentos todos os anos. Isto aplicado aos tempos modernos representaria cerca de dois biliões de mortes ano. É obra!

Na verdade, o homem sempre foi fiel à sua genética, à sua aprendizagem social e às suas circunstâncias competitivas e sempre respondeu à letra a toda e qualquer ameaça real ou presumida. O black friday foi apenas o último pretexto para o homem exercitar e se transformar no animal das cavernas que sempre foi!
 
Depois da abolição da escravatura, do fim oficial dos regimes e das politicas de segregação racial, da implementação de politicas de proteção e inclusão dos mais fracos, dos pactos de não agressão e da adopção do discurso do politicamente correcto, entre outros polimentos, eis que ao dobrar da esquina estala o verniz e ressurgem de forma fervorosa os "velhos" discursos populistas, que reintroduzem a natureza humana no seu melhor e dão vida às questões e clivagens históricas que sempre acompanharam a humanidade –  racismo, nacionalismos, xenofobismos, homofonismos e  outros ...ismos congéneres.

É sobretudo na época de escassez, das crises económicas, financeiras, sociais e políticas, que emerge no homem as suas características mais primitivas, de luta e fuga, de defesa e ataque! Na verdade o homem não perde uma oportunidade para manifestar o seu lado competitivo, animalesco, selvagem e cego.

A black friday, importada dos EUA e inspirada, ao que dizem, num dos episódios mais tristes da humanidade - a promoção na venda de escravos, foi apenas mais um pretexto para o homem revelar,  as entranhas da sua genética, o seu instinto animal, o resultado da sua boa socialização! Estúpida irracionalidade!

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Águas de Bacalhau


 
Sempre que mudo de meias, coisa que faço cada vez mais raramente, levanto-me quase ao nascer do sol, tal a empreitada que me espera!
Emparelhar meias é hoje para mim um autêntico quebra-cabeças. É bem mais provável o emparelhamento amoroso entre homens e mulheres, homens e homens e mulheres e mulheres, onde parece haver um íman invisível capaz de provocar autênticos arrastões de emparelhamento, que emparelhar um único par de meias. Mudar de meias é em certa medida até perigoso e coisa a evitar, tamanha a probabilidade que tenho de chegar atrasado ao meu santo emprego ou até faltar da parte da manhã e, ainda assim, apresentar-me com um par desencontrado.
Tenho em casa quatros gavetas repletas de meias pretas de canhão curto. Optei por esta tipologia de meias de forma estratégica, por ser daltónico e desse modo fugir ao potencial desorganizativo que as cores têm em mim. Mas estava longe de imaginar a tortura que me esperava. É que o meu parque de meias está de tal modo desemparelhado, envelhecido e degradado que pôr a coisa na ordem é uma tarefa hercúlea!

Um terço do meu portefólio de meias está cheio de carrapatos, seres que trago das vinhas às toneladas e que passam a habitar comigo em ambiente de grande intimidade. Outro terço do lote é constituído por meias aparentemente iguais, mas que na verdade têm sempre um ou outro pormenor impeditivo do sagrado emparelhamento. O último terço apresenta nuances de pretos de tal maneira diferentes que podem variar do preto escuro ao preto claro ou até, imagine-se, apresentarem riscas preto escuro, preto claro. Fui claro não fui?
Mas o fascínio das meias desemparelhadas não se fica por aqui.  Existe outa tipologia de meias que me fascina ainda mais – As meias verdades!

Antes de mais demandas, temos que prestar a devida homenagem e consequente agradecimento às particularidades do nosso sistema de escrutínio político, judicial, social e até jornalístico, por nos proteger de levar com verdades inteiras.

Noutros países, menos preocupados com a saúde mental dos seus cidadãos e por certo menos desenvolvidos, como a Dinamarca, Finlândia, Luxemburgo ou até a triste Alemanha, entre outros, existe esse o mau hábito de esclarecer tudo até ao fim. Países de pouca sensibilidade claro está, onde existe o mau hábito de tratar e esclarecer os processos judiciais que envolvem por exemplo, altos dirigentes de cargos públicos, políticos ou outros gatunos, até às ultimas consequências, chocando e aborrecendo as pessoas com a realidade nua e crua, sujeitando-as à severa consciência da realidade.

Em Portugal essa violência não se verifica graças a Deus e à existência de um moderno sistema, produto de anos de aperfeiçoamento, em que tudo fica sabiamente em águas de bacalhau! Assim, poupam-se os contribuintes portugueses a chatices desnecessárias e à confirmação de que os seus impostos possam acabar nos bolsos de um bandido qualquer.

Imaginem o que seria de nós se um dia destes nos confirmassem preto no branco que o Sócrates, o Pinho, o Vara, o Artur Santos Silva, o Duarte Lima ou um outro qualquer gatuno se apropriava do que era nosso. E se se descobrisse o que passou em Tancos? Seriam chatices atrás de chatices e noites mal dormidas, mais calmantes, mais comprimidos para a tensão, para a tesão e outros aborrecimentos sem necessidade!

Assim, este nobre pais é uma enorme gaveta de meias-verdades desemparelhadas, onde ainda é possível assistir em paz à novela da noite ou fantasiar sobre as encabadelas do Ronaldo, sem que ninguém nos incomode com a maçadora realidade!

 

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O último tiro




Nunca uma figura pública tocou tanto, tão de perto e profundamente as minhas mais cruas e reais memórias infantis como Anthony Bourdain. Violento, desagradável, mas real, Bourdain mostrava-nos, através da comida, a vida, os sonhos, as dificuldades e os medos de pessoas simples e genuínas de um qualquer lugar nos confins do mundo.
O primeiro programa que vi da série “sem reservas” retratava a matança do porco numa aldeia remota da Roménia, onde o animal foi pendurado pelas patas aos “gritos”, esfaqueado, sangrado e colocado numa daquelas pranchas de madeira, onde foi chamuscado a maçarico para depois ser de novo pendurado e “desmanchado”. A primeira iguaria foi cozinhada ali mesmo no meio do pátio contigo à casa, a partir das vísceras do animal. Era essa crueza sem filtros que me fascinava em Bourdain! Assisti em criança a todo esse ritual dezenas de vezes na quinta do meu padrinho João Pirolito – matador oficial de porcos na aldeia onde nasci! Aquilo era um espetáculo simultaneamente fascinante e horrendo que mexia com as nossas próprias vísceras!
Bourdain fez mais de 300 programas em 120 países. Eram viagens culturais e civilizacionais, usando como desculpa a culinária. E, como tinha a rara capacidade de observar e relatar tudo sem preconceitos, ideias feitas ou hierarquias, acabava por produzir retratos simples e profundos dos lugares por onde passava. Mostrava no fundo como todos nós, independentemente da origem ou condição somos, fortes e fracos, gulosos e frágeis.
Afinal de contas os programas eram o espelho do próprio - forte e fraco, guloso e por fim frágil, cru e violento…
O Bourdain mediático que se deu a conhecer ao mundo nasceu apenas no ano 2000 com livro antológico, “Kitchen Confidential”, que precipitou a sua ascensão mediática até à CNN, antes era um tipo não conseguia chegar ao fim do mês com um chavo que fosse. Vivia na vertigem da sobrevivência, nas catacumbas dos restaurantes, da cocaína e do álcool, na adrenalina da falta e da procura. Dezoito anos depois ascendeu ao cume, à abundancia e pelos vistos também ao vazio e à insuportável e intolerável dor de estar vivo. Suicidou-se aparentemente cheio… de nada!
Já Durkheim tinha verificado, na obra “o Suicídio” que quando há guerras e revoluções, a depressão e o suicídio decrescem, porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam e se submetem suicidam-se mais. E foi isso que aconteceu – Bourdain deixou de ter motivos para guerrear, para se revoltar… submeteu-se! Paz à sua alma.