quinta-feira, 28 de junho de 2018

O último tiro




Nunca uma figura pública tocou tanto, tão de perto e profundamente as minhas mais cruas e reais memórias infantis como Anthony Bourdain. Violento, desagradável, mas real, Bourdain mostrava-nos, através da comida, a vida, os sonhos, as dificuldades e os medos de pessoas simples e genuínas de um qualquer lugar nos confins do mundo.
O primeiro programa que vi da série “sem reservas” retratava a matança do porco numa aldeia remota da Roménia, onde o animal foi pendurado pelas patas aos “gritos”, esfaqueado, sangrado e colocado numa daquelas pranchas de madeira, onde foi chamuscado a maçarico para depois ser de novo pendurado e “desmanchado”. A primeira iguaria foi cozinhada ali mesmo no meio do pátio contigo à casa, a partir das vísceras do animal. Era essa crueza sem filtros que me fascinava em Bourdain! Assisti em criança a todo esse ritual dezenas de vezes na quinta do meu padrinho João Pirolito – matador oficial de porcos na aldeia onde nasci! Aquilo era um espetáculo simultaneamente fascinante e horrendo que mexia com as nossas próprias vísceras!
Bourdain fez mais de 300 programas em 120 países. Eram viagens culturais e civilizacionais, usando como desculpa a culinária. E, como tinha a rara capacidade de observar e relatar tudo sem preconceitos, ideias feitas ou hierarquias, acabava por produzir retratos simples e profundos dos lugares por onde passava. Mostrava no fundo como todos nós, independentemente da origem ou condição somos, fortes e fracos, gulosos e frágeis.
Afinal de contas os programas eram o espelho do próprio - forte e fraco, guloso e por fim frágil, cru e violento…
O Bourdain mediático que se deu a conhecer ao mundo nasceu apenas no ano 2000 com livro antológico, “Kitchen Confidential”, que precipitou a sua ascensão mediática até à CNN, antes era um tipo não conseguia chegar ao fim do mês com um chavo que fosse. Vivia na vertigem da sobrevivência, nas catacumbas dos restaurantes, da cocaína e do álcool, na adrenalina da falta e da procura. Dezoito anos depois ascendeu ao cume, à abundancia e pelos vistos também ao vazio e à insuportável e intolerável dor de estar vivo. Suicidou-se aparentemente cheio… de nada!
Já Durkheim tinha verificado, na obra “o Suicídio” que quando há guerras e revoluções, a depressão e o suicídio decrescem, porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam e se submetem suicidam-se mais. E foi isso que aconteceu – Bourdain deixou de ter motivos para guerrear, para se revoltar… submeteu-se! Paz à sua alma.


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