Nunca uma figura pública tocou tanto, tão de perto e profundamente as minhas mais cruas e reais memórias infantis como Anthony Bourdain. Violento, desagradável, mas real, Bourdain mostrava-nos, através da comida, a vida, os sonhos, as dificuldades e os medos de pessoas simples e genuínas de um qualquer lugar nos confins do mundo.
O primeiro
programa que vi da série “sem reservas” retratava a matança do porco numa
aldeia remota da Roménia, onde o animal foi pendurado pelas patas aos “gritos”,
esfaqueado, sangrado e colocado numa daquelas pranchas de madeira, onde foi
chamuscado a maçarico para depois ser de novo pendurado e “desmanchado”. A
primeira iguaria foi cozinhada ali mesmo no meio do pátio contigo à casa, a
partir das vísceras do animal. Era essa crueza sem filtros que me fascinava em
Bourdain! Assisti em criança a todo esse ritual dezenas de vezes na quinta do
meu padrinho João Pirolito – matador oficial de porcos na aldeia onde nasci! Aquilo
era um espetáculo simultaneamente fascinante e horrendo que mexia com as
nossas próprias vísceras!
Bourdain fez
mais de 300 programas em 120 países. Eram viagens culturais e civilizacionais,
usando como desculpa a culinária. E, como tinha a rara capacidade de observar e
relatar tudo sem preconceitos, ideias feitas ou hierarquias, acabava por
produzir retratos simples e profundos dos lugares por onde passava. Mostrava no
fundo como todos nós, independentemente da origem ou condição somos, fortes e
fracos, gulosos e frágeis.
Afinal de contas
os programas eram o espelho do próprio - forte e fraco, guloso e por fim frágil,
cru e violento…
O Bourdain
mediático que se deu a conhecer ao mundo nasceu apenas no ano 2000 com livro
antológico, “Kitchen Confidential”, que precipitou a sua ascensão mediática até
à CNN, antes era um tipo não conseguia chegar ao fim do mês com um chavo que
fosse. Vivia na vertigem da sobrevivência, nas catacumbas dos restaurantes, da
cocaína e do álcool, na adrenalina da falta e da procura. Dezoito anos depois
ascendeu ao cume, à abundancia e pelos vistos também ao vazio e à insuportável e
intolerável dor de estar vivo. Suicidou-se aparentemente cheio… de nada!
Já Durkheim tinha
verificado, na obra “o Suicídio” que quando há guerras e revoluções, a
depressão e o suicídio decrescem, porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas
não se revoltam e se submetem suicidam-se mais. E foi isso que aconteceu – Bourdain
deixou de ter motivos para guerrear, para se revoltar… submeteu-se! Paz à sua
alma.
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