Ela
tentara o suicídio vinte e quatro horas antes. O acto pareceu mais apelativo
que verdadeira intenção de morte, mas nunca se sabe. Na sessão seguinte,
apresentava um ar arrebitado, vivaço, pouco consistente com quem quisera morrer
na véspera. Mulher de estatura alta, autoritária, dinâmica, inteligente, perspicaz,
humor corrosivo, visão irónica, de grande exigência sobre ela própria e
sobretudo sobre os que a rodeiam! No Átomo Social (técnica de apresentação psicodramática)
foi-lhe pedido que colocasse no palco (instrumento psicodramático) as pessoas mais
significativas – o pai, teimoso e autocrático, a mãe, submissa e
deprimida, o irmão, menino da mamã, superprotegido e acomodado e finalmente o
marido, influenciável e indeciso! Apresentava portanto, reservas sobre todos,
ainda que se lhes declarasse um amor inequívoco! Mesmo relativamente ao marido
de quem se tinha separado após apenas seis meses de casamento e dez anos de
namoro. Apesar deste amor sem fim tinha, sobre todos, qualquer coisa a
apontar, uma espécie de espinha atravessada na garganta, que impedia a sua
satisfação plena! Era uma mulher sobressaltada e, nas sua próprias palavras, infeliz!
Quando
o director do grupo lhe pediu que trocasse de papel com cada uma das pessoas
significativas que colocou no palco, revelou uma inesperada dificuldade. No lugar dos outros, o discurso outrora escorrido e fácil, perdeu fluidez,
espontaneidade e sucumbiu a silêncios incómodos. Não sabia colocar-se no lugar
dos outros. Nunca o tinha feito! Estava amarrada aos seus próprios papeis, à sua visão do mundo! Apresentava um enquadramento inquinado sobre a realidade circundante, feito quase exclusivamente a partir
da sua própria “janela”. Encerrada em si, nesta posição, jamais poderia
compreende-los.
Quando
o director lhe pediu para mudar o que desejasse na cena, percorreu-os um a um e
deu-lhes uma pequena afinação, mais simpatia neste, menos submissão naquele,
mais atitude no aqueloutro. Afinou-os como se eles tivessem um pequeno parafuso de regulação
atrás da orelha, que ela sabiamente, munida de uma pequena chave de fendas
imaginária, ajustava ora mais para a direita, ora mais para a esquerda,
até os colocar no ponto! Sobre ela própria nenhuma palavra, nenhuma mudança! Neste
sentido, ela em pleno sofrimento, advogava uma solução mágica – ajustar o mundo
a si em vez de se adaptar a ele. Um equívoco portanto!
Somos
todos, uns mais que outros, um pouco assim – instalados no nosso castelo, no
nosso cadeirão panorâmico, centrados no nosso umbigo, esperamos que as relações
com os outros e com o mundo sejam uma espécie de fato feito à nossa medida! E perante a
diferença, estremecemos, sentimo-la frequentemente como uma ameaça à nossa
construção e à nossa organização interna. Temos imenso medo do que é diferente, do que é
desconhecido. E como a melhor defesa é o ataque, fazemos o contraditório, o
ataque ao outro, partindo muitas vezes de uma visão enviesada e inquinada.
Este ataque ganha contornos e amplitude mais ou menos intensos, consoante o nível
do conflito e o perfil da personalidade de cada um, seja na forma psicológica
ou, no limite, podendo chegar à eliminação física do outro.
Estamos
muito pouco dispostos a mudar, a ceder ou a conceder. Estes fenómenos
revelam-se nas famílias, nos grupos sociais, nas organizações, na
política, na economia de mercado ou em qualquer outra área da esfera das relações humanas.
Sob o
argumento da diferença são retirados todos os dias direitos fundamentais a pessoas, a grupos
ou agregações de toda a natureza, reduzindo-lhes ou aniquilando-lhes o direito
de escolher, de ser livres, de expressar a sua opinião, de expressar a sua
religião, as suas opções sexuais ou a liberdade de exibirem a cor da sua pele,
oprimindo-os, negando-lhes a qualidade de se constituírem com outro diferente! Reduzindo-os
à imagem e semelhança do dominador.
A diferença
de opinião torna-se argumento que legítima o ataque, legítima o exercício da prepotência, da
discriminação, da dominação e da exploração! A diferença merece, neste
contexto, o estatuto de inferioridade.
Este ano
morreram já mais de trinta e cinco mulheres vítimas de violência doméstica ou crimes de natureza passional. Morreram também 10 homens. Ironicamente, sete deles
suicidaram-se após terem executado as (ex) companheiras.
suicidaram-se após terem executado as (ex) companheiras.
Para
muitos, o lema continua a ser “mais vale quebrar que dobrar!”
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