sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os afinadores de pessoas



Ela tentara o suicídio vinte e quatro horas antes. O acto pareceu mais apelativo que verdadeira intenção de morte, mas nunca se sabe. Na sessão seguinte, apresentava um ar arrebitado, vivaço, pouco consistente com quem quisera morrer na véspera. Mulher de estatura alta, autoritária, dinâmica, inteligente, perspicaz, humor corrosivo, visão irónica, de grande exigência sobre ela própria e sobretudo sobre os que a rodeiam! No Átomo Social (técnica de apresentação psicodramática) foi-lhe pedido que colocasse no palco (instrumento psicodramático) as pessoas mais significativas – o pai, teimoso e autocrático, a mãe, submissa e deprimida, o irmão, menino da mamã, superprotegido e acomodado e finalmente o marido, influenciável e indeciso! Apresentava portanto, reservas sobre todos, ainda que se lhes declarasse um amor inequívoco! Mesmo relativamente ao marido de quem se tinha separado após apenas seis meses de casamento e dez anos de namoro. Apesar deste amor sem fim tinha, sobre todos, qualquer coisa a apontar, uma espécie de espinha atravessada na garganta, que impedia a sua satisfação plena! Era uma mulher sobressaltada e, nas sua próprias palavras, infeliz!
Quando o director do grupo lhe pediu que trocasse de papel com cada uma das pessoas significativas que colocou no palco, revelou uma inesperada dificuldade. No lugar dos outros, o discurso outrora escorrido e fácil, perdeu fluidez, espontaneidade e sucumbiu a silêncios incómodos. Não sabia colocar-se no lugar dos outros. Nunca o tinha feito! Estava amarrada aos seus próprios papeis, à sua visão do mundo! Apresentava um enquadramento  inquinado sobre a realidade circundante, feito quase exclusivamente a partir da sua própria “janela”. Encerrada em si, nesta posição, jamais poderia compreende-los.
Quando o director lhe pediu para mudar o que desejasse na cena, percorreu-os um a um e deu-lhes uma pequena afinação, mais simpatia neste, menos submissão naquele, mais atitude no aqueloutro. Afinou-os como se eles tivessem um pequeno parafuso de regulação atrás da orelha, que ela sabiamente, munida de uma pequena chave de fendas imaginária, ajustava ora mais para a direita, ora mais para a esquerda, até os colocar no ponto! Sobre ela própria nenhuma palavra, nenhuma mudança! Neste sentido, ela em pleno sofrimento, advogava uma solução mágica – ajustar o mundo a si em vez de se adaptar a ele. Um equívoco portanto!
Somos todos, uns mais que outros, um pouco assim – instalados no nosso castelo, no nosso cadeirão panorâmico, centrados no nosso umbigo, esperamos que as relações com os outros e com o mundo sejam uma espécie de fato feito à nossa medida! E perante a diferença, estremecemos, sentimo-la frequentemente como uma ameaça à nossa construção e à nossa organização interna. Temos imenso medo do que é diferente, do que é desconhecido. E como a melhor defesa é o ataque, fazemos o contraditório, o ataque ao outro, partindo muitas vezes de uma visão enviesada e  inquinada. Este ataque ganha contornos e amplitude mais ou menos intensos, consoante o nível do conflito e o perfil da personalidade de cada um, seja na forma psicológica ou, no limite, podendo chegar à eliminação física do outro.
Estamos muito pouco dispostos a mudar, a ceder ou a conceder. Estes fenómenos revelam-se nas famílias, nos grupos sociais, nas organizações, na política, na economia de mercado ou em qualquer outra área da esfera das relações humanas.
Sob o argumento da diferença são retirados todos os dias direitos fundamentais a pessoas, a grupos ou agregações de toda a natureza, reduzindo-lhes ou aniquilando-lhes o direito de escolher, de ser livres, de expressar a sua opinião, de expressar a sua religião, as suas opções sexuais ou a liberdade de exibirem a cor da sua pele, oprimindo-os, negando-lhes a qualidade de se constituírem com outro diferente! Reduzindo-os à imagem e semelhança do dominador.
A diferença de opinião torna-se argumento que legítima o ataque, legítima o exercício da prepotência, da discriminação, da dominação e da exploração! A diferença merece, neste contexto, o estatuto de inferioridade.
Este ano morreram já mais de trinta e cinco mulheres vítimas de violência doméstica ou crimes de natureza passional. Morreram também 10 homens. Ironicamente,  sete deles
suicidaram-se após terem executado as (ex) companheiras.
Para muitos, o lema continua a ser “mais vale quebrar que dobrar!”
 


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