quinta-feira, 8 de março de 2012

Enfim, gajas!




Um homem moderno quer-se bonito, bem vestido, depilado e a cheirar bem. Exibir boas maneiras e ser solidário e respeitador. Deve tratar o sexo oposto com delicadeza, ser carinhoso e comunicativo. Se quiser aspirar ao estatuto de príncipe encantado, deve ainda ter sentido de humor e ser inteligente. Elas assim o sonharam!
Na verdade passamos a vida a construir mascaras e a treinar papeis (1) para responder adaptativamente ao pulsar social, de forma a preservar uma certa “boa vizinhança relacional”.
Mas há alturas em que se solta em nós um animal selvagem, antes aprisionado e castrado, que desenvolve respostas do mais primitivo que se possa imaginar. Aliás, é normal encontrar muitos exemplos de pessoas socialmente certinhas e limpinhas, mas com uma vida paralela tão obscura e contraditória que faria corar uma puta – um submundo autêntico, acreditem. Dizem que dá pica e responde aos nossos impulsos mais cavernosos! O sexo é muitas vezes o campo onde se projectam e desenrolam muitos desses impulsos animalescos. Mas isso não é para aqui agora chamado. Figas canhoto, que estou todo arrepiado!
Quando o tiro de partida ecoou no céu azul dando início ao II mini-trail da Serra do Sicó, disparou em mim qualquer coisa animalesca. O cheiro a suor, o arfar ofegante das fêmeas no meu ouvido, e o seu constante roçar de nádegas mesmo à frente do meu nariz, projectaram-me numa viagem retrospectiva de milhões de anos. Transformei-me num animal!
Tal como no útero materno no momento em que se é concebido, a primeira decisão que temos que tomar, ainda que subconscientemente, é a de saber se queremos viver ou morrer. Vivemos nesta pulsão o resto da vida aliás.
Perante 21 km de subidas e descidas, decidi que iria concluir a prova. Afinal fui criado a trabalhar no campo, no tempo em que não havia iogurtes, papas Cerelac e outras lambarices. A iguaria da minha infância foi pão fresco com manteiga e leite gordo escorrido directamente das tetas da vaca que a minha mãe afincadamente ordenhava. Um macho portanto! Fiquei descansado! O instinto animal fez-me igualmente decidir que nenhuma mulher ficaria à minha frente!
A partir daquele momento elevou-se em mim um animal competitivo, mesclado pela dose certa de machismo, que passou a encarar a ideia de cuspir no chão, mijar à frente das gajas ou peidar-se pela a serra acima como a coisa mais natural do mundo.
Este tipo de percurso encerra porém uma dificuldade inesperada – As paisagens são de uma beleza imponente. A natural é deslumbrante. A feminina, com aquela sinfonia de arfadoras de curvas insinuantes e suadas, prende-te os sentidos sem piedade. Pensas em sexo. Mas estás ali para correr. É uma pena! Descobres rapidamente que, ou te concentras no terreno firme e esqueces a paisagem, ou te centras na paisagem e partes os cornos contra o primeiro calhau. Resta-te jogar num arriscado equilíbrio – um olho no burro outro no cigano!
À medida que fui ultrapassando mulheres crescia em mim um sentimento de apaziguamento, que era reforçado sempre que deixava mais uma para trás. Incomodado por esse sentimento cavernoso, desculpei-me – Porra, afinal isto é uma corrida ou não é? A verdade é que me dava um gozo libidinal sempre que deixava mais uma mulher para trás! Finalmente livrei-me das gajas todas!
Dediquei-me por fim aos homens. E pela serra me lancei neste desafio interno.
Enfim, aos seis quilómetros o primeiro abastecimento. Na mesa banana, maçã, queijo do rabaçal, mel e água. Era ver-nos a enfiar selvaticamente bananas pela goela abaixo. A cereja no topo do bolo. Eis-nos finalmente australopitecos!
Depois de muitas subidas e descidas, finalmente os últimos três quilómetros e uma inesperada inquietação. Atrás de mim, mas ainda ao longe começo a ouvir um leve cacarejar de uma gaja. Porra, não pode ser, pensei. Aquela já a tinha deixado para trás há séculos. Por fim a temerosa certeza. A gaja passou por mim como cão por vinha vindimada. Tentei repostar! Apelei ao que restava das minhas forças e do meu machismo e esperei não perder aquele rabo da vista para mais à frente, junta à meta, ter o prazer de a voltar a ultrapassar com pés de veludo. Seria lindo!
Nada. Os músculos não responderam e a gaja sumiu-se para nunca mais a ver! Uma tristeza!
Mais tarde, já na meta, descobri que afinal mais umas gajas tiveram o desrespeito e a ousadia de chegar antes de mim! Enfim gajas! Não sabem levar uma corrida na boa! As gajas são assim, não perdem uma oportunidade de competir com um homem.
No final da corrida recuperámos rapidamente a postura. Humanizamo-nos e invadidos por um bom sentimento de missão cumprida, lançamo-nos numa genuína e afectuosa camaradagem. Afinal era para isso que lá estávamos. Rematamos com queijo do rabaçal, bebemos Super Bock Stout bem fresca e prometemos voltar! Parabéns a todos!

(1) Teoria psicodramática Moreniana

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