Aquilo
é tudo malta na casa dos setenta e tal. Gente que trabalhou uma vida inteira sem
saber o que são férias, praias, hotéis ou outras mordomias. Gente que vingou sem
favores, favorecimentos ou recompensas. Gente feliz com lágrimas que aprendeu na velha trilogia – Deus, pátria e família a
não se queixar. Gente simples,
humilde, que aprendeu a não dar passos maiores que a pernas, que construí a vida
aos poucos, sempre no pouco, sem concessões, vertigens consumistas, empréstimos
bancários ou outras invenções do capitalismo.
Gente que não comprou hoje para
pagar amanhã. Gente que cresceu e constituiu família num quarto equipado com um
estrado de madeira e um colchão de palha, um penico, um fogão e um WC arejado
no cimo de uma meda de estrume, no meio do quintal.
Mas
avisam logo – estamos aqui para vindimar, não contem connosco para carregar com
os poceiros. É que estamos velhos!
O
Arnaldo, quase nos oitenta, puxa dos galões do mais idoso do grupo e avança – Sabem?
Trabalho na agricultura desde os onze anos. Por isso, quem quiser trabalhar que
trabalhe, que eu agora só trabalho até ao meio-dia.
Depois
havia o grupo dos quase cinquentões, constituído por mim, pelo Manelote e pelo
Peralta, todos nascidos na transição do tempo em que uma
sardinhas assada dava para dois e as papas Cerelac! Nem sei bem ao certo a que é que
comíamos! Somos um pouco híbridos!
Em
comum temos também um certo declínio físico! Fortes dores de costas e outros
sinais de cedência físico e/ou mental. Já não somos propriamente aqueles
rapazotes capazes de saltar como as cabras do monte, embora o substantivo
cabras nos seja bastante familiar. Mas é uma pena, éramos todos tão novos e
saudáveis! O que nos vale é que à medida que vamos envelhecendo fisicamente,
vamos também perdendo o discernimento!
Iniciamos
a vindima na Vinha das Penicas às 8h30 e terminámos por volta do meio-dia e meia. Pelo
meio uma retemperante bucha com sardinhas, queijo, presunto, asas de frango
fritas e pão, regadas por minis e vinhos tintos e espumantes da mesma vinha. Foi a
única actividade em que nos portamos como rapazes novos!
A
verdade é que ter dores físicas é um grande privilégio - Estamos vivos e a
fazer coisas que gostamos. Noutros tempos ninguém chegava à nossa idade. Morriam
todos cedo. Aquilo era uma pressa. Desde a pré-historia até à idade moderna, morrer
na casa dos trinta e poucos era uma moda. Os gajos não se queixavam de nada, morriam
com a coluna nova em folha e as costelas intactas, não tinham diabetes, que as
pastelarias eram raras, nem obesidade ou colesterol que aquele pessoal era
danado para correr! Alzheimer e Parkissonismo nem sabiam o que aquilo era.
Raramente se via um careca na rua e não havia um único lar de terceira idade. Aquele
pessoal quando morria era de vez!
Convivemos
mal com o envelhecimento e sobretudo com a morte. Cada vez mais somos tentados a
prolongar a vida, distanciando-nos da morte, não pensando nela ou procurando
escondê-la.
Com o acentuar do laicismo, afirma-se cada vez mais que após a
morte nada há mais, o que modifica o comportamento humano e incentiva cada vez
mais a viver a vida, a gozar os prazeres dos sentidos corporais. Escondemos a
morte das nossas vistas em lares e hospitais e os corpos, esses, ultima prova
do nosso declínio, são queimados em crematórios longe da vista!
Na Idade Média a morte era um acontecimento público. Ao pressenti-la, o moribundo recolhia ao seu quarto, acompanhado por parentes, amigos e vizinhos, cumpria um ritual - pedia perdão por suas culpas, legava seus bens e esperava a morte chegar. Não havia um carácter dramático ou gestos de emoção excessivos. O corpo era enterrado nos pátios das igrejas – que também eram palco de festas populares e feiras. Mortos e vivos coexistiam no mesmo espaço. A partir do séc. XIII foram proibidos jogos, danças e feiras nos cemitérios: começava a soar incómoda a proximidade entre mortos e vivos.
Hoje, exceptuando os vivos que não foram avisados da sua morte, o único sítio onde mortos e vivos coabitam pacificamente é nos cadernos eleitorais. Ainda nas últimas eleições um indivíduo vivo e cheio de saúde foi impedido de exercer o seu direito de voto por estar morto e outros, supostamente vivos, não compareceram nas urnas por estarem mortos. Um confusão, que só tem paralelo nos cadernos de registo de sócios dos clubes de futebol! Enfim, somos uns felizardos por sermos, estarmos e parecermos vivos!