quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Gente que se recusa a morrer


 
Aquilo é tudo malta na casa dos setenta e tal. Gente que trabalhou uma vida inteira sem saber o que são férias, praias, hotéis ou outras mordomias. Gente que vingou sem favores, favorecimentos ou recompensas. Gente feliz com lágrimas que aprendeu na velha trilogia – Deus, pátria e família a não se queixar. Gente simples, humilde, que aprendeu a não dar passos maiores que a pernas, que construí a vida aos poucos, sempre no pouco, sem concessões, vertigens consumistas, empréstimos bancários ou outras invenções do capitalismo.
Gente que não comprou hoje para pagar amanhã. Gente que cresceu e constituiu família num quarto equipado com um estrado de madeira e um colchão de palha, um penico, um fogão e um WC arejado no cimo de uma meda de estrume, no meio do quintal.

Mas avisam logo – estamos aqui para vindimar, não contem connosco para carregar com os poceiros. É que estamos velhos!
 
O Arnaldo, quase nos oitenta, puxa dos galões do mais idoso do grupo e avança – Sabem? Trabalho na agricultura desde os onze anos. Por isso, quem quiser trabalhar que trabalhe, que eu agora só trabalho até ao meio-dia.
O Arnaldo, o meu pai o Zé Fonseca e o meu tio Zé Elísio, todos juntos somam mais de 300 anos de idade! É Obra! Andam todos de pé, mas o material acusa desgaste. Não há vértebra ou articulação que não estejam comprometidas. Comprometidas mas não ao ponto de lhes vergar o ânimo, que eles foram, no bom sentido, enxertados em corno de cabra e comeram o pão que o diabo amassou! Esta gente transporta o testemunho dos tempos. Um legado!
Depois havia o grupo dos quase cinquentões, constituído por mim, pelo Manelote e pelo Peralta, todos nascidos na transição do tempo em que uma sardinhas assada dava para dois e as papas Cerelac! Nem sei bem ao certo a que é que comíamos! Somos um pouco híbridos!
Em comum temos também um certo declínio físico! Fortes dores de costas e outros sinais de cedência físico e/ou mental. Já não somos propriamente aqueles rapazotes capazes de saltar como as cabras do monte, embora o substantivo cabras nos seja bastante familiar. Mas é uma pena, éramos todos tão novos e saudáveis! O que nos vale é que à medida que vamos envelhecendo fisicamente, vamos também perdendo o discernimento!
Iniciamos a vindima na Vinha das Penicas às 8h30 e terminámos por volta do meio-dia e meia. Pelo meio uma retemperante bucha com sardinhas, queijo, presunto, asas de frango fritas e pão, regadas por minis e vinhos tintos e espumantes da mesma vinha. Foi a única actividade em que nos portamos como rapazes novos!
A verdade é que ter dores físicas é um grande privilégio - Estamos vivos e a fazer coisas que gostamos. Noutros tempos ninguém chegava à nossa idade. Morriam todos cedo. Aquilo era uma pressa. Desde a pré-historia até à idade moderna, morrer na casa dos trinta e poucos era uma moda. Os gajos não se queixavam de nada, morriam com a coluna nova em folha e as costelas intactas, não tinham diabetes, que as pastelarias eram raras, nem obesidade ou colesterol que aquele pessoal era danado para correr! Alzheimer e Parkissonismo nem sabiam o que aquilo era. Raramente se via um careca na rua e não havia um único lar de terceira idade. Aquele pessoal quando morria era de vez!

Mas nós não somos uns insatisfeitos. Deram-nos anos de vida e nós queremos mais. Dão-nos um dedo e queremos logo o braço todo. Queremos andar por ai até aos cem sem dores, sem rugas e cheios de tesão e sobretudo felizes todos os dias, como se a tristeza não fizesse parte e não fosse essencial à condição humana. Para isso besuntamo-nos diariamente com cremes caros, tomamos elixires mágicos a toda a hora e, se necessário, tomamos até uns certos aditivos!
Convivemos mal com o envelhecimento e sobretudo com a morte. Cada vez mais somos tentados a prolongar a vida, distanciando-nos da morte, não pensando nela ou procurando escondê-la.
 
Com o acentuar do laicismo, afirma-se cada vez mais que após a morte nada há mais, o que modifica o comportamento humano e incentiva cada vez mais a viver a vida, a gozar os prazeres dos sentidos corporais. Escondemos a morte das nossas vistas em lares e hospitais e os corpos, esses, ultima prova do nosso declínio, são queimados em crematórios longe da vista!

Na Idade Média a morte era um acontecimento público. Ao pressenti-la, o moribundo recolhia ao seu quarto, acompanhado por parentes, amigos e vizinhos, cumpria um ritual - pedia perdão por suas culpas, legava seus bens e esperava a morte chegar. Não havia um carácter dramático ou gestos de emoção excessivos. O corpo era enterrado nos pátios das igrejas – que também eram palco de festas populares e feiras. Mortos e vivos coexistiam no mesmo espaço. A partir do séc. XIII foram proibidos jogos, danças e feiras nos cemitérios: começava a soar incómoda a proximidade entre mortos e vivos.
Hoje, exceptuando os vivos que não foram avisados da sua morte, o único sítio onde mortos e vivos coabitam pacificamente é nos cadernos eleitorais. Ainda nas últimas eleições um indivíduo vivo e cheio de saúde foi impedido de exercer o seu direito de voto por estar morto e outros, supostamente vivos, não compareceram nas urnas por estarem mortos. Um confusão, que só tem paralelo nos cadernos de registo de sócios dos clubes de futebol!  Enfim, somos uns felizardos por sermos, estarmos e parecermos vivos!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 




Sem comentários: