domingo, 3 de maio de 2020

Vinhas das Penicas - vinhedos antigos


 

Nasci no seio de uma família ligada à agricultura de subsistência numa pequena aldeia rural no concelho de Coimbra. Participei desde muito cedo nas rotinas quotidianas dos trabalhos agrícolas familiares – ora na rega ou sacha do milho e feijão com o meu pai, ora acompanhando a minha mãe na “moitas” dos arrozais do baixo mondego, ora guiando a junta de bois do meu tio Xico – prestador de serviços de lavoura para fora, que me assalariava com um magistral bacalhau assado na brasa com alho e azeite escorrido pelos queixos abaixo ou uns “cricos” à Bolhão Pato trazidos da praia da Figueira da Foz pelo peixeiro Neves, com os quais subornava a parelha de soldados da GNR que percorriam as aldeias nas sua bicicletas pasteleiras.

Na época das vindimas acompanhava os ranchos de mulheres e homens, guiando a junta de bois amarelos no transporte das dornas cheias de uvas para a adega. Sem dar conta, fiz-me gente numa relação umbilical com a terra, com as suas gentes e com as práticas ancestrais da agricultura de subsistência.

Jamais pude imaginar o quanto esta “simplicidade”, este cheiro a terra acabada de remexer, esta dura e mágica vida dos campos marcaria o meu ADN.

Já na casa dos 30 anos, fascinado entretanto pelo admirável mundo dos vinhos e acometido pelo ímpeto notálgico de regresso às memórias de infância, resolvi - voltar à lavoura, mas desta vez para dar expressão à minha mais recente paixão. Fiz o meu primeiro vinho a partir de uvas de uma vinha muita velha plantada em solos graníticos maioritariamente com a casta Touriga Nacional. Estava consumado essa fatalidade do destino!

Defensor de uma vitivinicultura sustentável, que respeita a terra, as vinhas, as pessoas e as tradições e apaixonado pelo conceito de vinhos de intervenção mínima, iniciei na sub-região Terras de Sicó um trabalho de recuperação de vinhas velhas e ensaios de vinificação que decorrem durante as últimas 14 vindimas, nas quais experimentei diferentes abordagens de vinificação com as castas autóctones de vinhas velhas.

Este trabalho experimental, apelidado por muitos de louco, por apostar em vinhas em declínio que pouco produziam, leva-me em 2017 à criação do projeto Vinha das Penicas – Vinhedos Antigos, com o objetivo de criar vinhos de autor, vinhos com intervenção mínima, de produções muito limitadas, a partir dos pouco mais de dois hectares de vinhas muito velhas que fui encontrando, nalguns casos já votadas ao abandono, mas que eu acreditava puderem dar origem a vinhos diferentes e de excepcional qualidade.

Estas vinhas, de quatro parcelas distintas, situam-se na freguesia de Lamas, no concelho de Miranda do Corvo e na freguesia de Vila Seca e Venda da Fé, no concelho de Condeixa e têm idades situadas entre os 50 e os 100 anos.

 A região conserva um património impar de vinhedos antigos, plantados em solos de maioritariamente de origem argilo-calcárea de diferentes nuances, mas também encontramos solos com afloramentos de xisto. Nestas vinhas, já com muitas falhas fruto da avançada idade das cepas, encontramos plantadas mais de uma dezena de castas autóctones, predominando a casta baga nas uvas tintas e a casta fernão pires e bical nas uvas brancas.

Para além destas castas, largamente dominantes, é possível identificar outras castas como sejam, nas tintas, a casta bastardo, a rufete, a trincadeira da bairrada e a casta grand noir, trazida para a região por trabalhadores franceses aquando da construção do ramal ferroviário da Lousã. Nas castas brancas podemos encontrar a borrado das moscas (bical), cerceal da bairrada, dona branca, diagalves e rabo de ovelha.

Para colmatar as cepas em falta nestas quatro parcelas plantei “bacelos bravos” que têm vindo a ser enxertados com “garfos” das castas autóctones lá plantadas, garantindo assim a restruturação das vinhas com o material genético original, mantendo intacto o AND de cada uma das parcelas.

A região apresenta um clima temperado mediterrânico caracterizado por invernos frios e húmidos e verões quentes e secos, registando-se frequentemente a ocorrência de nevoeiros matinais que se mantêm até cerca das 11 horas da manhã, permitindo maturações equilibradas e a obtenção de vinhos tintos elegantes e brancos com grande frescura.
Desde vinhos falarei mais à frente.





terça-feira, 27 de novembro de 2018

O bom selvagem


Levantaram-se ao nascer do sol, enfiaram a primeira roupa de lhes apareceu pela frente, engoliram o pequeno almoço e lançaram-se para a rua em azafama, com se nada mais importasse. Conduziram os seus carros em fúria, negaram prioridades no trânsito, estacionaram em cima dos passeios e correram em direção às lojas, desenfreados, atropelando novos e velhos, deficientes e crianças. Passaram por cima de toda a folha para, já em manada tipo gnus, se apertarem contras as grades das lojas, esperando o tiro de partida para o assalto final. Era o Black Friday.

O filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), defendeu que o homem se constituía como uma entidade naturalmente boa e que seria no processo civilizacional que se corrompia e se afastava da sua verdadeira natureza, transformando-se, por vezes, numa besta quadrada, a que Trump pode servir de exemplo deveras ilustrativo…

Eu sempre duvidei dessa natureza boa. Sempre desconfiei que o homem já nasce com um ligeiro instinto bélico, mas independentemente do momento em que nos tornámos verdadeiros aninais, o que conta é que de facto somos, na maioria do tempo, umas bestas uns para os outros. Sempre fomos!

O homem é a espécie animal mais prematura e imatura, a mais dependente e a que mais depende à nascença das condições ambientais e dos cuidados dos seus progenitores. É também por isso, por essa infância prolongada, por essa oportunidade relacional de grande proximidade que o homem encontra as condições para evoluir e se destacar dos demais animais. Foi na relação que o homem primitivo progrediu e se emancipou, tornando-se homo sapiens .

Na verdade o ponto de viragem de tudo isto foi a descoberta da linguagem, a partir da qual o homem ganhou a capacidade de transmitir conhecimento adquirido e acumulado a lugares e tempos distantes.  Antes o homem não passava de um animaleco somente capaz de grunir e gesticular no momento os poucos instintos que possuía.

Estima-se que há cerca de 100 mil anos o contingente de homens primitivos modernos no planeta não seria mais de 50 mil gatos pingados espalhados pelo continente africano e médio oriente. Isto, depois dos homens primitivos modernos europeus, ao fugirem da vaga de frio na europa, irromperem por Africa abaixo e dizimarem os tristes africanos. Era a primeira prova da boa relação Europa e Africa!

Com tanta zaragata e pancadaria estima-se que há 50 mil anos a população de homens modernos não ultrapassaria os 5 mil indivíduos. Na verdade, como todos se dedicavam à caça e a colecta de plantas e outros alimentos, como nada se acumulava e nada havia para trocar, sempre que grupos diferentes se encontravam era um "deus nos acuda" e porrada de meia noite! Ou seja, nunca houve condições para florescer nenhum sentimento de simpatia pelo outro diferente nesta época! Ontem, tal como hoje, o homem tem muita dificuldade em tolerar a diferença!

Segundo Lawrence H. Keeley (1947-2017) a sociedade tribal perdia em média 0.5% da sua população em combates pela posse de alimentos todos os anos. Isto aplicado aos tempos modernos representaria cerca de dois biliões de mortes ano. É obra!

Na verdade, o homem sempre foi fiel à sua genética, à sua aprendizagem social e às suas circunstâncias competitivas e sempre respondeu à letra a toda e qualquer ameaça real ou presumida. O black friday foi apenas o último pretexto para o homem exercitar e se transformar no animal das cavernas que sempre foi!
 
Depois da abolição da escravatura, do fim oficial dos regimes e das politicas de segregação racial, da implementação de politicas de proteção e inclusão dos mais fracos, dos pactos de não agressão e da adopção do discurso do politicamente correcto, entre outros polimentos, eis que ao dobrar da esquina estala o verniz e ressurgem de forma fervorosa os "velhos" discursos populistas, que reintroduzem a natureza humana no seu melhor e dão vida às questões e clivagens históricas que sempre acompanharam a humanidade –  racismo, nacionalismos, xenofobismos, homofonismos e  outros ...ismos congéneres.

É sobretudo na época de escassez, das crises económicas, financeiras, sociais e políticas, que emerge no homem as suas características mais primitivas, de luta e fuga, de defesa e ataque! Na verdade o homem não perde uma oportunidade para manifestar o seu lado competitivo, animalesco, selvagem e cego.

A black friday, importada dos EUA e inspirada, ao que dizem, num dos episódios mais tristes da humanidade - a promoção na venda de escravos, foi apenas mais um pretexto para o homem revelar,  as entranhas da sua genética, o seu instinto animal, o resultado da sua boa socialização! Estúpida irracionalidade!

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Águas de Bacalhau


 
Sempre que mudo de meias, coisa que faço cada vez mais raramente, levanto-me quase ao nascer do sol, tal a empreitada que me espera!
Emparelhar meias é hoje para mim um autêntico quebra-cabeças. É bem mais provável o emparelhamento amoroso entre homens e mulheres, homens e homens e mulheres e mulheres, onde parece haver um íman invisível capaz de provocar autênticos arrastões de emparelhamento, que emparelhar um único par de meias. Mudar de meias é em certa medida até perigoso e coisa a evitar, tamanha a probabilidade que tenho de chegar atrasado ao meu santo emprego ou até faltar da parte da manhã e, ainda assim, apresentar-me com um par desencontrado.
Tenho em casa quatros gavetas repletas de meias pretas de canhão curto. Optei por esta tipologia de meias de forma estratégica, por ser daltónico e desse modo fugir ao potencial desorganizativo que as cores têm em mim. Mas estava longe de imaginar a tortura que me esperava. É que o meu parque de meias está de tal modo desemparelhado, envelhecido e degradado que pôr a coisa na ordem é uma tarefa hercúlea!

Um terço do meu portefólio de meias está cheio de carrapatos, seres que trago das vinhas às toneladas e que passam a habitar comigo em ambiente de grande intimidade. Outro terço do lote é constituído por meias aparentemente iguais, mas que na verdade têm sempre um ou outro pormenor impeditivo do sagrado emparelhamento. O último terço apresenta nuances de pretos de tal maneira diferentes que podem variar do preto escuro ao preto claro ou até, imagine-se, apresentarem riscas preto escuro, preto claro. Fui claro não fui?
Mas o fascínio das meias desemparelhadas não se fica por aqui.  Existe outa tipologia de meias que me fascina ainda mais – As meias verdades!

Antes de mais demandas, temos que prestar a devida homenagem e consequente agradecimento às particularidades do nosso sistema de escrutínio político, judicial, social e até jornalístico, por nos proteger de levar com verdades inteiras.

Noutros países, menos preocupados com a saúde mental dos seus cidadãos e por certo menos desenvolvidos, como a Dinamarca, Finlândia, Luxemburgo ou até a triste Alemanha, entre outros, existe esse o mau hábito de esclarecer tudo até ao fim. Países de pouca sensibilidade claro está, onde existe o mau hábito de tratar e esclarecer os processos judiciais que envolvem por exemplo, altos dirigentes de cargos públicos, políticos ou outros gatunos, até às ultimas consequências, chocando e aborrecendo as pessoas com a realidade nua e crua, sujeitando-as à severa consciência da realidade.

Em Portugal essa violência não se verifica graças a Deus e à existência de um moderno sistema, produto de anos de aperfeiçoamento, em que tudo fica sabiamente em águas de bacalhau! Assim, poupam-se os contribuintes portugueses a chatices desnecessárias e à confirmação de que os seus impostos possam acabar nos bolsos de um bandido qualquer.

Imaginem o que seria de nós se um dia destes nos confirmassem preto no branco que o Sócrates, o Pinho, o Vara, o Artur Santos Silva, o Duarte Lima ou um outro qualquer gatuno se apropriava do que era nosso. E se se descobrisse o que passou em Tancos? Seriam chatices atrás de chatices e noites mal dormidas, mais calmantes, mais comprimidos para a tensão, para a tesão e outros aborrecimentos sem necessidade!

Assim, este nobre pais é uma enorme gaveta de meias-verdades desemparelhadas, onde ainda é possível assistir em paz à novela da noite ou fantasiar sobre as encabadelas do Ronaldo, sem que ninguém nos incomode com a maçadora realidade!

 

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O último tiro




Nunca uma figura pública tocou tanto, tão de perto e profundamente as minhas mais cruas e reais memórias infantis como Anthony Bourdain. Violento, desagradável, mas real, Bourdain mostrava-nos, através da comida, a vida, os sonhos, as dificuldades e os medos de pessoas simples e genuínas de um qualquer lugar nos confins do mundo.
O primeiro programa que vi da série “sem reservas” retratava a matança do porco numa aldeia remota da Roménia, onde o animal foi pendurado pelas patas aos “gritos”, esfaqueado, sangrado e colocado numa daquelas pranchas de madeira, onde foi chamuscado a maçarico para depois ser de novo pendurado e “desmanchado”. A primeira iguaria foi cozinhada ali mesmo no meio do pátio contigo à casa, a partir das vísceras do animal. Era essa crueza sem filtros que me fascinava em Bourdain! Assisti em criança a todo esse ritual dezenas de vezes na quinta do meu padrinho João Pirolito – matador oficial de porcos na aldeia onde nasci! Aquilo era um espetáculo simultaneamente fascinante e horrendo que mexia com as nossas próprias vísceras!
Bourdain fez mais de 300 programas em 120 países. Eram viagens culturais e civilizacionais, usando como desculpa a culinária. E, como tinha a rara capacidade de observar e relatar tudo sem preconceitos, ideias feitas ou hierarquias, acabava por produzir retratos simples e profundos dos lugares por onde passava. Mostrava no fundo como todos nós, independentemente da origem ou condição somos, fortes e fracos, gulosos e frágeis.
Afinal de contas os programas eram o espelho do próprio - forte e fraco, guloso e por fim frágil, cru e violento…
O Bourdain mediático que se deu a conhecer ao mundo nasceu apenas no ano 2000 com livro antológico, “Kitchen Confidential”, que precipitou a sua ascensão mediática até à CNN, antes era um tipo não conseguia chegar ao fim do mês com um chavo que fosse. Vivia na vertigem da sobrevivência, nas catacumbas dos restaurantes, da cocaína e do álcool, na adrenalina da falta e da procura. Dezoito anos depois ascendeu ao cume, à abundancia e pelos vistos também ao vazio e à insuportável e intolerável dor de estar vivo. Suicidou-se aparentemente cheio… de nada!
Já Durkheim tinha verificado, na obra “o Suicídio” que quando há guerras e revoluções, a depressão e o suicídio decrescem, porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam e se submetem suicidam-se mais. E foi isso que aconteceu – Bourdain deixou de ter motivos para guerrear, para se revoltar… submeteu-se! Paz à sua alma.


domingo, 26 de novembro de 2017

Plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro… fazer “o vinho”!


Farei um esforço para que este texto não cheire a presunção, não seja profundamente egocêntrico, narcisistas e cagão. Não é fácil tratando-se de quem se trata. Mas vamos lá…

O título deste post não deve ser lido apenas no seu significado literal! Caso assim fosse teríamos, nessa superficialidade, apenas acesso ao lado robótico e materialista da questão! Devemos pois, em nome da boa análise, expandir a nossa interpretação englobando nela as nossas mais profundas intuições, as nossas crenças, as nossas influências, as nossas intenções, os nossos medos, as nossas angústias, os nossos desejos mais secretos, as nossas qualidades e defeitos. Os nossos pecados!

Então, a nossa árvore, os nossos filhos, os nossos livros serão a expressão do nosso mundo espiritual, introspetivo e consciente. Serão a expressão do propósito da nossa existência, um desenho para a vida. O nosso desenho. Um desenho que seja eterno até que a vida se nos apague!

Sendo assim, não quero fazer um “Vinho”! Quero fazer o “Vinho”! O vinho que pudesse ser inscrito no meu cartão de cidadão! Que expresse uma identidade profunda, uma filosofia, que seja autêntico nas suas qualidades e nas suas arestas. Sim, porque os grandes vinhos não são redondinhos e bem acabadinhos. Os grandes vinhos resultam de condições limite e por vezes adversas, são filhos de anos atípicos, de condições climatéricas atípicas, de produtores atípicos! Os vinhos monumentais são como as pessoas monumentais! Atípicos!

Os grandes vinhos transportam a expressão única do local onde foram feitos, expressam a coerência, o fervor, as expectativas e as dores do seu artesão. Têm uma marca de água… são inconfundíveis!

O engarrafamento era para começar às nove em ponto! Não começou! Tive a ajuda de dois velhos amigos e companheiros destas andanças, o Zé Mário Carvalho e o Miguel Carvalho – dois bons car..valhos, é o que eles são! E por falar em carvalhos, todos os vinhos engarrafados estagiaram 12 meses em barricas recondicionadas de carvalho francês.

Em cada garrafa que se rolha, em cada último impulso no engarrafador, sublinha-se a esperança que o tempo, esse mestre do acabamento, aprecie o nosso trabalho e sobre ele faça magia – a magia de transformar o nosso suor, as nossas dores e por vezes as nossas lágrimas, num néctar que nos encha a alma e que nos eleve ao Olimpo.

Cada garrafa que se arruma sela um ciclo. Um ciclo que começou um ou dois anos antes na vinha com a poda, empa, escavação das cepas, nutrição, tratamentos, desladroamento, desfolha, vindima e finalmente a vinificação. E muitas dores! O nosso trabalho enológico acaba no exacto momento em que o vinho por fim entra em cada garrafa. Depois nada mais há a fazer a não ser esperar… sentado! É que nestes tintos feitos com uvas da casta poeirinho (baga) de vinhedos antigos com idades entre os 70 e os 100 anos, tudo é feiro devagar e a espera é obrigatória. Ao contrário dos tempos que correm!
É que a Baga, também chamada por aqui de poeirinho, é capaz de tudo. Se mal trabalhada na vinha e na adega é capaz de fazer vinhos tão ácidos, delgados e frios que são capazes de nos provocar um arrepio pela espinha acima. Ao contrário, se as uvas tiverem origem em boas vinhas, com boa exposição solar e se bem trabalhadas na vinha e na adega são capaz de originar vinhos monumentais, que se podem beber por 20 ou 30 anos!

Os vinhos baga são vinhos tânicos, ainda que, paradoxalmente, sejam por regra ligeiros de cor. Apresentam uma longevidade invulgar e pouco expectável para um vinho de mesa e em alguns casos tornam-se lendários, irrepetíveis e com carácter absolutamente raro. Os grandes tintos da casta baga nos primeiros anos de vida mostram sobretudo aromas de vinificação. Dos três aos cinco anos parecem fechar-se um pouco, para a partir dai explodirem em aromas de fruta preta e vermelha bem madura, de frutos silvestres macerados, tabaco, com final de boca fino e especiado, leve vegetal e aromas terrosos muito pronunciados! Têm frequentemente um nariz muitíssimo perfumado e balsâmico, com sugestões de violeta. São vinhos únicos!

O primeiro vinho engarrafado, a que chamamos “Penicas Vinhas Velhas” entra neste perfil de vinhos de espera. Foi vinificado em 2016 maioritariamente com uvas da casta poeirinho de uma vinha situada em Casais de S. Clemente com cerca de 70 anos, a que juntamos 1% de uvas brancas da casta maria gomes da mesma vinha e complementamos o lote com 20 % de touriga nacional da vinha da Penicas e 15% de uvas da casta tintureira Grand Noir de uma vinha muito velha situada na aldeia de Vila Seca. Ainda que a carecer de estágio em garrafa, prevalecem no nariz intensas notas aromáticas de chocolate negro e especiarias!

O segundo vinho a entrar nas garrafas foi vinificado em 2015 e teve 2 anos de estágio em barrica. Feito em exclusivo com uvas da casta baga da vinha quase centenária de Casais de S. Clemente. Apresenta prenunciados aromas balsâmicos e surpreendentes notas salinas. Chamamos-lhe “Penicas Baga 2015”

O terceiro vinho não estra neste perfil de vinhas velhas. Resultou de uvas da Vinha das Penicas, vinificado em 2016 com as castas Touriga Nacional – dominante no lote e ainda Tinta Roriz, Sirah, Merlot e Calladoc. É uma vinha com cerca de 10 anos, situada bem mais próximo do mar e origina vinhos tipicamente bairradinos, mais minerais e frescos. Dá pelo nome de “Vinha das Penicas 2016”
Por fim misturamos os 3 vinhos anteriores e obtivemos um vinho a que chamamos “Penicas blend”! E que pretende ser a súmula de todo o trabalho que realizamos ao longo destes dois últimos anos.

E pronto agora vamos dormir, até à poda, e esperar até 2020 que o tempo trabalhe! Se eu já não estiver por cá, as garrafas estão na minha garrafeira, logo à direita dentro da manilha!

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A Invasão do Profano

Conheceram-se na faculdade de direito. Durante cinco belos anos namoraram, partilharam boémias, dividiram irresponsabilidades, gastaram mesadas, beberam e foram felizes. Muito felizes. Juraram união e amor para sempre. Acabaram os cursos, montaram escritório conjunto, viajaram, compraram casa e bons carros e viveram felizes. Durante seis meses! Período ao fim do qual decretaram incompatibilidades inultrapassáveis. Divorciaram-se sem apelo!

Este poderia ser um bom exemplo daquilo a Zygmunt Bauman, sociólogo polaco que nasceu em 1925, denominou de liquidificação dos tempos, nas obras “society Liquid”, “Liquid Modernity” e “Liquid Love.

Terá sido o capitalismo a determinar este aceleramento dos tempos e do "passo social" ao impor a influência ou predomínio económico ou político do capital. De facto o capitalismo criou novos objectos e as pessoas criaram novas necessidades para os adquirir. Criou mais novas necessidades e mais objectos para as satisfazer e criou sobretudo a ideia de que quanto mais se trabalhasse a mais objectos se poderia aceder. A quantos mais objectos se acedesse maior conforto e felicidade se alcançavam e mais objectos se poderiam ter. Através desta perigosa crença, o capitalismo procedeu a uma reconfiguração social e económica das sociedades. Reconfigurou as relações.

Zygmunt Bauman, traz esta pespectiva de liquidez como a marca de água dos nossos tempos, conceito, que segundo ele, se pode aplicar transversalmente às novas manifestações dos sentimentos, ao consumismo, à globalização e que implica o desmoronamento das ideologias, dos valores e dos princípios.

De facto hoje assistimos ao predomínio e ao triunfo da pulsão e do gozo, sobre os ideais. Acabou-se o tempo de espera – tudo tem que ser para agora. Instantâneo! E se o não for gera frustração, à qual respondemos com intolerância. Perdeu-se o registo do simbólico, da fantasia e do sonho. Vive-se no registo do concreto – eu quero, logo tenho!

A procura do gozo e da satisfação é constante. Insaciável! Se os animais irracionais têm uma programação genética prévia e se guiam por instintos inscritos no seu ADN que tendem a asseguraram a sua sobrevivência, nós vivemos ao sabor do impulso e do gozo, fugindo sempre que podemos à dor emocional e à frustração, que deveriam ser justamente o motor do crescimento. É que sem dor e sem tolerância à frustração não há crescimento interno!

Nesta procura acelerada e desesperada, nesta pulsão constante nada se cria de verdadeiramente novo, pelo contrário, é na repetição que se procura o gozo – no sexo, no jogo, nas compras, nas relações superficiais, inconstantes e promiscuas, nos consumos de álcool e de outras drogas. Tudo se torna efémero, superficial e descartável.

Verificou-se um declínio dos valores e dos princípios, da ética e da moral. Os papéis sociais e as relações perderam solidez. Destruturaram-se as famílias. Eclodiram novos modelos familiares – monoparentais, homossexuais, perdeu-se a concepção de família com contexto relacional por excelência. Diluiu-se a autoridade da figura paternal. Esbateu-se a norma e a lei. Inverteram-se papeis - Os filhos mandam nos pais. Os alunos desesperam os professores! Perdeu-se o conceito de autoridade. Tudo flui, tudo se liquidifica!

A ideia de uma sociedade líquida ganhou assim o poder e configurou a nossa época. Assistimos ao triunfo da fluidez, do precário, do transitório, do permeável e do que não se deixa apreender, onde os laços são tendencialmente momentâneos, frágeis e volúveis. As relações misturam-se e condensam-se num mundo cada vez mais dinâmico, fluído e veloz. Tudo se torna flexível!

Esta é a condição da sociedade em que vivemos em todas as suas dimensões, tanto estruturais como super-estruturais, tanto no plano material e económico, como no plano da vida afectiva e intelectual. Assistimos ao triunfo das relações virtuais, à ditadura dos iPhones, Smartfones, tablets, notebooks. Tudo vale para nos impedir de estarmos sós. Tudo serve para disfarçar o medo – o medo desta imensa solidão! O nosso medo!

A mercantilização do Panteão Nacional, o florescimento dos políticos e das politicas populistas ou a eleição do senhor Trump, poderiam ser apontados como outros exemplos daquilo a que Bauman designou por liquidação dos valores, dos símbolos, da ética e da moral.

Contrapõe-se assim, ao  recuo do simbólico, dos valores, dos ideais e das nossas crenças, a ofensiva do profano! A profanação da nossa Era!

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Ai, ai... fardas!!


As fardas intrigam-me! Vá um gajo a uma boa casa de alterne ou passe em frente a um qualquer quartel e é ver a efervescência que as ditas causam! Aquilo é um contorcer de pernas sem fim, parecem ter o efeito de um Alka-Seltzer num copo de água. É uma vertigem, uma obsessão!

Nas casas de strip-tease, eles fardados de policias, oficiais da marinha, comandantes de avião ou de bombeiros,  em cima daquela armadura que parece mesmo pele verdadeira, com abdominais perfeitos que quase enganam as mais distraídas. Toda a gente sabe que aquilo é PVC manipulado, encaixado em cima da pele flácida. Elas vestidas de enfermeiras, hospedeiras de bordo ou professorinhas de uniforme colegial, cabelo apanhado e óculos. É um cenário untuoso, fisgas canhoto, que arrepio!

Fardas de comissários de bordo também são escolhas frequentes e costumam agitar o universo feminino. Deve ser por andaram nas nuvens, porque no fundo não são mais que  empregados de mesa que andam pelos ares! Mas elas adoram andar pelos ares! Fardas e nuvens é a conjunção pecaminosa, o disparate completo! Mas há profissões que são completamente anti-tusa. Já viram algum stripper vestido de jornalista, padeiro, coveiro, contabilista ou motorista de autocarro? Não viram pois não? Bem, só se for o fulano do “pica do 7”!

Nos tempos que correm se um gajo anda à civil não tem hipóteses. O único uniforme civil capaz de fazer tocar a campainha no cérebro delas é o smoking, mas elas estão formatadas para tipos como o David Beckam ou o George Clooney e com azar ainda somos confundidos com um empregado de mesa de um bar,  e  corremos o risco de nos pedirem uns croquetes e mais uma garrafa de branco bem fresco!

Mas voltando ao fetiche, que raio pode explicar tamanha lambarice por fardas, sobretudo nas mulheres?  Será porque as fardas vestiram os grandes heróis, reais ou ficcionados,  homens bravos e corajosos, figuras de comando, símbolos de autoridade, poder e proteção? Será pela representação da lei, da sentença e do castigo?  Ai o castigo, esse tau-tau maroto! Será pelos apetrechos? Algemas, chicote, bastão ou espada? Será que apesar dos movimentos de liberação feminina, apesar da pílula, apesar da profissionalização etc., elas ainda sonham com um ombro musculado, forte e protector? Bem, é sabido que desde o tempo das cavernas, as fêmeas procuram os machos mais fortes para caçar mamutes e acasalar. A atração é também atávica, portanto.
Sendo assim, e porque a farda masculina é um fetiche e um homem fardado, condecorado com quilos de medalhas e armado com pistola ou espada, deixa de ser humano para se tornar um ícone de garbo, um símbolo de altivez, hombridade, inteligência, força e poder, tomei a única decisão inteligente neste contexto de luta pela sobrevivemcia – passarei doravante a envergar uma imponente e aparatosa farda pelo menos dois dias por semana!

Numa primeira fase, a que chamaria experimental, tipo projeto-piloto, apenas usarei farda aos fins-de-semana à noite! Sairei então todas as sextas à noite com belíssima e faustosa farda da marinha portuguesa, de um branco puro, ostentando a patente de Capitão-de-mar-e-guerra, pendurando sobre o nobre pano três quilos de medalhas adquiridas previamente nesse ícone da modernidade que são as feiras das velharias!

Alternadamente, aos sábados, vestirei sumptuosa farda de gala com o posto de brigadeiro-general do exército português de fazer salivar a mais fria das mulheres ao cimo da terra. Um gajo não se pode deixar ficar para trás!